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A Milionésima Segunda Estória

Apesar da aridez daquela região desértica, havia um volumoso rio que serpenteava contrastando com a desolação local. Em ambas as margens duas tribos irmãs se ergueram e edificaram ali seus magníficos califados. Era muito difícil para um forasteiro dizer qual reino era mais rico, belo ou reluzente. E havia uma séria disputa entre os califados acerca destes predicados. Na ocasião que um príncipe se casou com a princesa do outro reino as famílias reais tornaram-se aparentadas. Durante esse período as disputas amainaram. Contudo, conforme o Tempo, aquele que segue inexorável frente aos problemas humanos, fez-se presente, novamente cresceram entre os súditos, até mesmo entre a própria realeza, o burburinho e as provocações: por que a Torre Manzar El-sama´ é a mais ornamentada, que a arquitetura da mesquita Al-Balôr é mais arrojada e assim por diante….

Essa competição realmente acirrou os egos das duas nações quando um fato curioso ocorreu. Em ambos os califados haveriam novos príncipes, dois primogênitos! E assim, as disputas que agora eram apostas, tomaram como foco os dois não-natos. Quem nasceria primeiro? E o mais belo? E o mais forte? E o mais inteligente?

Logo as crianças nascerem com apenas 4 dias de diferença [Anuar nasceu primeiro] e não pareciam estarem dispostas a facilitar as contendas. Eram ambos belos, fortes e inteligentes, com personalidades distintas, é claro, mas pares em seu berço real.

Assim cresceriam, como cresceriam as divergências entre os califados. O califa Fadel bradava ao sol inclemente que não haveria ser mais radiante que seu filho, Zayn, dotado de olhar lânguido e perspicaz. Em contrapartida, o califa Náder gritava aos ventos que espalhassem que seu filho era sinônimo de perfeição, pois seu olhar sério e penetrante dominava até a mais temível das serpentes. Um tomava conhecimento da declaração do outro e replicava com maior intensidade. Até que chegou o momento que os rapazes deveriam procuram suas futuras esposas. Foi então que o califa Náder teve a infame ideia de que os príncipes deveriam sair juntos e disputar a noiva mais linda que encontrassem. O califa Fadel concordou prontamente alegando fiar-se de seu primogênito.

Desta feita partiram lado a lado as comitivas com seus príncipes e seus séquitos caminhando por muitos dias sob os rigores do deserto. Certa noite, o príncipe Anuar quis conhecer seu adversário e o convidou para um chá. O príncipe Zayn se dirigiu à tenda de seu antagonista na hora combinada com seus conselheiros e assim seguiu o chá, pleno de formalidades. Inicialmente sentiu-se intimidado pelas grossas sobrancelhas de Anuar, que realmente faziam jus a fama de dominar as bestas apenas com seus olhos, logo já não reparava mais.

Anuar não tardou a inquirir sobre conhecimentos gerais, por pura provocação, as quais Zayn respondeu prontamente, enquanto saboreava finas uvas, superando as expectativas de oponente, que viu neste algo instigante, uma percepção de um olhar fugidio, de difícil captura. Ao término do encontro, despediram-se de maneira formal, mas Zayn surpreendeu ao quebrar o protocolo e apertando a mão de Anuar desejou que ele encontrasse a mais bela esposa. Atônito com o gesto inusitado, Anuar agradeceu e retirou-se para seus aposentos, intrigado com seu rival. No dia seguinte a marcha seguiu viagem rumo ao seu primeiro destino, o magnífico oásis de Fardaus.

A chegada dos príncipes ao oásis foi celebrada durante três dias consecutivos, fileiras de alaúdes ressonavam por toda rua, passagem ou galeria. Uma nuvem embriagante de mirra se erguia em júbilo aos mais belos filhos de Allah, e no último foram apresentadas as mais sublimes meninas que lá havia. Anuar se adiantou em querer primeiro averiguar as formosuras, porém uma dúvida surgiu: e se Zayn depois colhesse a cativante flor? Acabou decidindo-se por nenhuma. Zayn, por sua vez, conversou com cada uma, sempre altivo, porém terno. Contudo, o príncipe não se decidiu por nenhuma para espanto dos habitantes de Fardaus e a caravana seguiu viagem para a província de Nafisa (preciosa), famosa por seu aspecto cosmopolita, considerada uma Gema Europeia incrustada na borda do deserto.

Durante o trajeto, foi a vez de Zayn convidar Anuar para o chá. Anuar compareceu, mas percebeu logo na entrada uma atmosfera diferente, pois não haviam guardas nem conselheiros. Um leve aroma de almíscar criava um ambiente acolhedor. Indagando a Zayn sobre onde estariam os subalternos, este respondeu de maneira concisa que os guardas estavam logo ao lado e que não havia, de sua parte, a necessidade de conselheiros já que ambos os príncipes eram iguais.

Anuar assentiu e igualmente dispensou os seus, dizendo, porém, que a ideia de igualdade era falsa, já que deveria haver um superior entre os dois. “Pode ser” - declarou Zayn oferecendo o narguilé “Mas devo ser sincero, nunca vi sentido nessa contenda imposta por nossos pais. Nosso bem-estar há de estar acima de disputas tão mundanas”.

Novamente Anuar se espantou com a fala do opósito; tal ponto de vista jamais havia lhe passado pela cabeça. Inquiriu sobre o assunto e com assombro considerou a teoria de Zayn sobre a independência e a felicidade certa que acreditava estar guardada por Allah para ambos os príncipes. Sem refrear-se, Anuar questionou a fala de Zayn desejando que ele mais bela esposa, feita no primeiro chá muitas luas atrás.

Pesaroso, o príncipe declarou que não tinha intenção real de disputar uma esposa com Anuar, que desejava de fato que este encontrasse a mais bela dentre as belas. “Pois então digo que a contenda é finita, minha superioridade frente a ti é óbvia, pois és um traidor dos desígnios de teu pai, o Grande Califa Fadel” - bradou Anuar imponente, levantando e dirigindo-se à saída da tenda quando súbito ouviu “Penses aquilo que lhe provir, mas, ainda assim, irei para Nafisa.

O resto da viagem para a famosa província foi um tormento para Anuar, que significavam as palavras de Zayn? E principalmente, por que ainda rumaria para a província? Seria um ardil para confundir? Haveria qualquer outro plano? Uma febre estranha se apossou do príncipe na noite seguinte e em meio aos delírios convencia-se de que havia algo oculto, que Zayn esondia-lhe algo valioso.

Em Nafisa foram recebidos novamente com festas e honras e introduzidos a um número maior de formosuras; Anuar, recuperado da febre mas não menos desconfiado, decidiu que Zayn escolheria primeiro a que mais lhe interessasse, esperando que este o fizesse e assim poderia ser desmascarado da farsa de não haver interesse. Tamanha foi sua decepção quando Zayn declinou de todas as beldades. Transtornado, Anuar mal conseguiu prestar atenção às graças que se dispunham em sua frente e findou por declinar também. Os seguidores dos príncipes nada entendiam muito menos os habitantes de Nafisa.

A caravana seguia agora para a cidade portuária de Zahra, famosa por possuir lindas damas estrangeiras. Durante uma lua cheia, Zayn recebeu um novo convite para um chá, e seguiu sozinho, a contragosto de seus conselheiros. “Aqui estou, meu amigo” - adentrando a tenda vazia, exceto por Anuar. “Agora somos amigos?” - replicou desconfiado o príncipe oferecendo tâmaras. “Sempre o fomos, já que somos pares, viajamos juntos, nascemos apenas um de cada lado do belo rio Baraka. Não considero te outra coisa senão um grande amigo, pois dividimos os mesmos anseios e responsabilidades” declarou de maneira calma e segura”.

“Não te compreendo. Por que abres mão de provar tua superioridade para teu povo?” - retornou confuso Anuar. “Creio realmente que somos iguais e não vejo motivo em concorrer a coisa alguma contigo, que considero um bom amigo. Veja, se somos pares, sei que tens medo, por que também o tenho eu. Tanto como o orgulho, a preocupação, a determinação de ser correto consigo próprio. Não sentes o mesmo?” - interpelou Zayn aguardando diretamente nos olhos de Anuar que apenas balbuciou algo similar a um sim aturdido, mas ainda restando fixamente nos olhos delineados de Zayn - “Mas não desejas esposar a mais linda das mulheres?”

“Na verdade, não. Somente uma criatura está a altura do meu amor” - retrucou Zayn seguro. “E quem haveria de ser?” - questionou Anuar. “Aquele que me é igual, que é par. Somente aquele que será capaz de entender as aflições deste amor que me toma todos os sentidos, que me faz trair os desígnios de meu pai. E tal criatura és tu, meu grande amigo” - e ao declarar pousou a mão com calor e delicadeza na face do outro que teso suspendeu a respiração; Zayn aproximou-se ainda fitando o olhar incrédulo de Anuar e o beijou com a paixão dos desertos pelos oásis, dos homens pelas estrelas, dos desejos secretos pelo ar livre e liberto das manhãs de sol. Anuar por fim respirou e correspondendo ao beijo, deixou se entregar em um longo abraço terno e seguro, quando por fim indagou“E agora?”

A caravana jamais chegou a Zahra, pois os príncipes desapareceram em meio a noite escura. Seus pais se acusaram mutuamente mas restaram por crer em algum sequestro nefasto.

Muitas milhas longe do deserto, numa pequena aldeia próxima ao Cairo, dois novos comerciantes improvisavam uma pequena barraca de mirra e almíscar, rogando à Allah que a felicidade nunca finde.

fábio.shakall.sp.sp.10.2015


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