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Um Jogo De Mim Mesmo

Dedicado a Neil Gaiman

O relato que inicio agora ocorreu há muito tempo, em uma época confusa da minha vida. Vagando em um labirinto de emoções contraditórias e cansado de brigar comigo mesmo, propus um jogo, um embate interno e convoquei meu outro eu. Contudo não esteja certo, talvez ele [o outro] tenha me convocado. E para facilitar a compreensão do caso, irei chamá-lo de Mim.

Estabelecemos um terreno neutro, que se configurou como uma estrada ao lado de uma pastagem plana e quase vazia, exceto por uma torre de cupins dessas que se erguem imponentes sobre as pastos onde uma luz difusa levemente púrpura não projetava sombras. E então começamos a jogar.

Apresentei minhas cartas, montando combinações de memórias de infância, antigos afetos e risadas frenéticas, tudo confeitado na candura dos tempos idos. Mim observou meu jogo e de forma concisa e ríspida foi anulando minhas combinações. Expôs mágoas, desafetos e até um ódio de morte que senti pela minha melhor amiga da 3ª. série, que eu sequer lembrava.

De onde ele tirou essas lembranças?- me perguntei.

Com esforço articulei momentos de férias, paz, e arrematei com os causos contados pelo meu avô. Mim demonstrou certo espanto mas, agilmente instalou culpa e muito desconforto, um sentimento próximo de um pavor que tive por conta do cachorro da família, que me odiava e eu a ele. Novamente acuado, fui atrás dos bons amigos de adolescência, gritos e festas. Agora havia uma canção dos Smiths tocando ao fundo e um gosto de cerveja divertidamente quente quando súbito recordo o beijo que ganhei da minha paixão aos 18 anos. Preenchi o ambiente com o perfume barato dela e percebi certa aflição em Mim que constrangido começou a articular um novo contragolpe. Uma canção popular horrível irrompeu e juntamente gritos! E reconheci as vozes dos meus tios. Uma contração involuntária me tomou o estômago porque reconheci o cenário de caos e horror que Mim evocava: a morte dos meus pais e o sentimento de abandono no qual mergulhei em um arrastado desgosto pela vida. O cheiro do hospital, todas as lágrimas e o discurso que não consegui ler durante o sepultamento, tudo retornou e mais uma vez me vi indefeso diante de Mim.

Como poderia ele ser mais forte?

Com os olhos embargados, recomecei uma nova jogada evocando o amor de uma professora que me orientou para o mundo das leis, as quais eu tanto amo. Articulei um jogo truncado com e derrotas e vitórias, e permeei tudo ao sabor de um beaujolais que tomei em uma praia em Santa Catarina, ao lado do grande amor da minha vida, um momento de intimidade sublime, de êxtase e luz.

Mim riu.

Subitamente todo o entorno escureceu e um vento maligno me estapeou a face. Embora não conseguisse ver, sabia que havia pesadas nuvens não muito acima, senti uma areia pastosa de uma praia e novamente tremi frente ao jogo final de Mim: o dia em que fui abandonado por ela e meus filhos. Ajoelhei e senti o cheiro amargo do mar misturado a algum peixe morto. Uma garoa fria e cortante fustigava enquanto o terror do abandono me apossou. Senti que Mim estava perto me observando com olhos austeros... então era esse o ponto onde Mim queria chegar! E novamente a ideia de entregar me ao mar invadiu! Sim, finalmente eu concluiria aquilo que não consegui naquela noite. Iria me juntar aos velhos galeões e repousaria no seio soberbo que a todos acolhe. Renunciaria a vida de uma vez por toda.

Contudo, ainda que moído internamente alcei a cabeça com sofridão e por com esforço me levantei e encarei o vulto de Mim e aguardei. Por fim um raio de sol despontou e percebi que Mim olhava atônito e surpreso. Fiz assim renascer o dia, e que o sol brilhasse altivo invadindo cada momento, por toda minha vida para que não houvessem mais nuvens nem sombras.

Desolado, Mim deixava que as lágrimas lhe escorressem. Abracei-o e afaguei seus cabelos secos. Ninguém venceu e ninguém haveria de morrer e nunca mais brigaríamos.

fábio.shakall.sp.sp.08.2015

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