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Vidas Findas

Jurupoca que era ligeira. Apesar da idade ia na frente. Atrás a Menina Mais Nova corria no encalço da gata velha e estropiada. Jurupoca não deixava passar uma barata, um besouro e se fartava nos insetos variados presentes na estrada preta em decomposição. Depois vinha o Pai de olhos bem abertos, abestado com esse mundo diferente. A Mãe e a Menina Mais Velha vinham juntas, ora agarradas uma na outra ora de cabeça baixa, escondendo a cara do ar pesteado que fedia cada vez mais, a cada passo. Tava difícil de respirar. Vinham da antiga comunidade que se formou nas ruínas de outrora cidade de Piedade. O Pai encasquetou que ali não dava jeito, que tinha que tinha que sair de lá. Mas pra onde perguntava a Mãe? Vamu pru labirintu du Sumpaulu! Respondia o Pai. Lá tem um lugar mágico que tem fartura. E ele falava abobado com a própria ideia cheio de brilho nos olhos. As meninas repetiam Sumpaulu Sumpaulu Sumpaulu. A Mãe desconfiava. A Mãe era estudada e sabia ler. Tentava ensinar as meninas mas quê?!?! Pra quê?!?! Desde que os rios secaram e as cidades viraram ruínas que ninguém mais lia. Ler não era necessidade não. Mas saber caçar era. Encontrar um bom cachorro pra comer ou até um gato mais novo. Não como a Jurupoca que tava velha e acabada. Mas ainda era esperta. Jurupoca sabia que a carne que apodrecia pelos cantos das estradas não podia comer. E ninguém relava.

Mas já tinha uns par de dias que estavam naquela lida de andar na estrada preta... E a estrada tinha gente morando dentro dos carros abandonados. Gente arisca e esquisita. Gritavam fácil por qualquer coisa mas sempre perguntavam com cuidado: tem água?

Água era ouro. E o pai guardava dentro de saquinho plástico o pouquinho que tinha achado rente a pedra. Mãe lia no saquinho “pau de assucar”. Já faziam sete luas desde a última tempestade de saquinhos. Só Mãe sabia contar também. As tempestades de saquinhos vinham devagar rodopiando feito bicho louco que tá pra morrer, muitos saquinhos emaranhados se atacando e girando pra cima e pra baixo com um vento forte de cheiro podre pra cima e pra baixo e de novo e de novo. Todo mundo dizia que parecia bicho vivo. Mas como é que podia tanto saquinho assim? Nem Mãe não conseguia contar. Pois teve uma que perdeu o filho na tempestade. Ninguém ousava. Era morte certa e por onde a tempestade passava só deixava decomposição. Na última, o Pai foi esperto. Viu antes e tomou outro rumo. Achou as pedras grandes. E resto de água no fundo das pedras. Mas agora eles iam pra Sumpaulu. Lá não tinha tempestade de saquinho.

Mãe parou diante dum pedaço de metal verde no canto da estrada preta e leu CARAPICU. Pai perguntou o que era carapicu e Mãe apontou o dedo. É o ferro! Respondeu. Carapicu é o ferro com os escritos. Pai estranhou. Jurupoca nem ligou. As meninas pulavam em cima do metal repetindo carapicu carapicu. Passou lua, passou vento e outra placa apareceu e Mãe leu: OSSASCU.

Pai perguntou não era carapicu. Agora é ossascu. Pai achava estranho.

A água acabou por acabar e Pai não encontrava mais nada. Fuçava que fuçava tudo o ao redor e nada de nada. Jurupoca ia junto e todo momento voltava correndo pra junto deles. O ar fedia demais. Mãe já bambeava das pernas. O Pai também. Cadê Sumpaulo Passou vento, passou sol. A Menina Mais Nova chorava. Não queria mais mascar o capim cheio de terra com gosto ruim. Queria água!

Mas a paisagem foi mudando. Mais e mais ruínas de prédios, muito mais carros encostados e gente, cheio de gente, olhando brava pra eles que passavam. Era Sumpaulo. Todo mundo perguntava tem água? Tem água? Escondidos atrás de muitos carros, o Pai deu os últimos goles para o grupo. Molhou a boca da mãe que beijando molhava a boca das filhas. Tomou um restinho pra si e jogou o saquinho plástico pra Jurupoca lamber. Jurupoca andava esquisita.

Passou vento, passou estrela e já não tinha mais estrada preta. Era só labirinto e o resto do povo fuçando o resto do resto do lixo. Tiveram que amarrar panos no rosto porque o ar ardia e era difícil de respirar. Debaixo de uma árvore seca outra placa. Mãe lia MADALENA. Quem era Madalena? Pai andava gemendo com a mão na barriga. Naquela noite gritou e gritou e morreu tombando em cima da montanha de lixo que um dia foi uma rua. Debaixo de um plástico grande preto e azul mãe procurou e achou o facão do Pai e assim cortou a barriga do falecido. As meninas choravam miúdo e olhavam. Mãe lambeu o sangue e forçando a cabeça da mais velha gritou VAI! Ela lambeu também. Depois foi a vez da mais nova. Passaram a noite sorvendo o sangue do Pai. Até Jurupoca saciou-se.

No dia seguinte prosseguiram caminhando. Passando por cima das montanhas de lixo. Mãe cambaleava. Encontraram um velho de olhos rasgados sem pernas todo coberto por saquinhos que perguntou onde cês vão? Cantareira! respondeu a mãe. Pra que lado é Cantareira? O velho riu. Não existe Cantareira! Acabou faz muito tempo, antes do tempo dos rios. Mãe não entendia. Como que não retrucou a Mãe. O Dono da Água acabou com tudo. O Dono da Água não quer mais nada aqui gritava o velho num misto de histeria e canto. Onde que é que tá o Dono da Água? Tá nu palássu!!! O Dono da Água mora no palassú. As meninas ouviam assustadas, agarradas uma na outra. Até Jurupoca tava com medo.

Quando a lua chegou, Mãe amarrou o plástico na placa onde lia CONSOLASSAU. A dor era forte. Mãe sabia o que ia acontecer. Deixou o facão com a Menina Mais Velha. Suava frio e gemia. Depois morreu. A Menina mais velha já sabia o que fazer. Lanhou a Mãe e beberam do sangue. Jurupoca também.

Perdidas sem água e sem rumo, as duas meninas ficaram se escondendo aqui e ali, em todo canto. Depois a mais nova faleceu e o ritual macabro se cumpriu de novo. Quase sozinha, se não fosse pela Jurupoca, a Menina Mais Velha viu o sol levantar naquele dia decidida segurando forte o facão do Pai. Juruppoca miou. Iria até o palássu matar o Dono da Água.


fábioshakall.03.2015.sp.br

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