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5 Traquinices: José Gomide de Castro - 5a. série B

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Entrar para a 5a série dava uma sensação especial em todos nós. Parece que a 4a era coisa de criança e estando na 4a jurávamos que éramos quase iguais a 5a. Agora estando de fato na 5a havíamos deixado de ser criançinhas. Agora estávamos no ginásio! Vai ter História e Geografia separado! Ciências! Artes! E tinha todo o ritual de comprar um caderno grande e grosso com arame na borda para dividir as matérias [chega de caderninho pequeno de criancinha!]. Onde seria mais barato: no seu Alcidino ou no Foto Ueda?

Mas na 5a série juntavam se as antigas 4as. E o menino mais esquisito do colégio veio estudar com a gente, o Jairo. Ele era um dos poucos moleques que andavam de skate. Chegava na escola de skate e ia embora de skate. Eu era da turma da bicicleta, da bici, e já tinha tentado andar de skate uma vez mas não gostei. Mas não era só isso, o Jairo usava muita roupa preta, tinha uma franja caindo no olho e quase não conversava com ninguém e nem brincava com a gente no recreio, ops, intervalo! Agora deveríamos dizer intervalo! Ah, e ele só sentava na última cadeira do fundão.

Foi por conta de uma gincana que não ganhamos que me aproximei do Jairo para tentar convencer a participar de uma cena de novela. Ele era um tipo meio galã e as meninas eram quase unânimes que tinha que ser ele e ele disse que não queria, deixando todos nós loucos. Começávamos a discussão em sala e ele levanta a cabeça e dizia: eu não vou participar! Depois de três dias de insistência fomos eu, o Zé Pereira e a Catarina, minha amigona, falar com ele pessoalmente no intervalo, mas fui eu quem mais falou e disse que ele tinha que participar porque era nossa primeira gincana [as 4as. não participavam] e que éramos “uma turma só” e nem lembro mais o que eu disse. Mas o Jairo topou.

A nossa participação na gincana foi um mico total e a tal cena de novela então foi um desastre. Com roupas emprestadas de pais, tios e até de brechó mal conseguimos dizer as frases da cena e perdemos miseravelmente. Mas aí fiquei mais próximo do Jairo.

Algumas semanas depois, antes de começar a aula vi o Jairo escrevendo em Inglês na lousa do fundo: 666 the number of the beast. Fiquei intrigado. Só sabia que number significava número. Anotei a frase e chegando em casa fui tentar traduzir. Lembro do meu espanto quando cheguei próximo da tradução: 666 o número da besta!

No dia seguinte, através de bilhetinhos, contei pra Catarina que havia traduzido a frase na lousa e o que significava. A Catarina vinha de uma família mais religiosa e disse que era coisa do Apocalipse! Me espantei mais ainda. Depois no intervalo ela me explicou que aquilo estava numa parte da Bíblia [eu não conhecia] e falava sobre o fim do mundo. Desse dia em diante comecei a achar o Jairo muito mais esquisito.

Na semana seguinte eu cheguei na escola e a Catarina veio branca até mim e disse pra eu olhar pra camiseta do Jairo. Era uma camiseta de caveira! Na verdade, ele já tinha usado essa camiseta antes, mas agora, com a frase da besta do apocalipse, o terror estava formado! Passamos dias discutindo o assunto. Seria o Jairo discípulo de satã? Ele queria o fim do mundo? Por que só usava preto? Contamos pro Zé Pereira que ouviu sério e só soltou um profundo e longo “Xééé!!!”.

Nas semanas que se seguiram fui saber do apocalipse, da besta e de tudo. Um misto de medo e curiosidade macabra tomou conta de mim. Quanto mais eu lia, mais eu ficava impressionado. Conversei com uma tia que era muito inteligente e praticamente não entendi porque ela disse que era tudo bobagem. Bobagem? Como bobagem? Aquilo era seríssimo! Era sobre o fim do mundo!

Mais semanas se passaram e um dia apareceu de novo o famigerado escrito na lousa do fundo. Não resisti e fui ter com ele. Perguntei se ele manjava de Inglês e ele disse que entendia pouco. Senti certo alívio. Então perguntei se sabia o que estava escrito na lousa e ele disse que foi ele mesmo que escreveu e que era sobre o número da besta. Imagino que devo ter ficado pálido. Então ele emendou que era o nome de uma música do Iron Maiden. Perplexo, sem entender bulhufas, perguntei: quem é? Com um tom calmo e baixo ele me explicou que era uma banda e me mostrou um desenho que ele mesmo tinha feito no caderno de uma múmia segurando uma bandeira. Achei o desenho bem feito, embora a múmia fosse horrível. Parecia coisa de gibi de terror que tinha na banca. Perguntei se a banda era do apocalipse... devo ter dito uma bobagem assim, ou algo do gênero. Jairo disse que não, que era rock, que era heavy metal.

A conversa foi interrompida pelo sinal do fim da aula mas o Jairo disse que depois me mostraria. Fiquei curiosíssimo e na saída fui correndo contar pra Catarina que aliviada disse que sabia o que era heavy metal porque o tio dela escutava alto no quarto e que era uma música horrorosa. Pelo menos o enigma do apocalipse havia terminado. Fiquei eu curioso sobre o tal heavy metal e o Iron Maiden.

No dia seguinte o Jairo me trouxe uma fita k7 e me emprestou reforçando que eu deveria cuidar e devolver. Então em casa ouvi Iron Maiden pela primeira vez e concordei com a Catarina imediatamente: que música horrorosa. Mas fiquei ouvindo. Foi o primeiro lado, mudei para o segundo. Achei engraçado porque tinha muita guitarra aguda, gritos e umas paradas. Ouvi de novo com mais atenção, e fui ouvindo e ouvindo. Então comecei a gostar.

Depois de um tempo convenci até a Catarina e o Zé a ouvir. Ela gostou, o Zé não. O Jairo se tornou um puta amigão! Me mostrou outras bandas e sempre me mostrava seus desenhos no caderno, cada vez melhores.

Quando cheguei na 6a série, eu também desenhava múmias nos cadernos e escrevia durante as aulas de Educação Moral e Cívica, com um sorriso bobo no rosto, na lousa do fundo: 666 the nunber of the beast!

[Fábio Shakall, julho 2014, SP/BR]

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