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5 Traquinices: O prezinho

A Fernanda era minha melhor amiga. A Fêr. Amigona mesmo, tipo irmã. Sei lá, melhor que irmã porque com irmã às vezes rola briga e a Fêr não saía do meu lado e eu do lado dela. Ela era muito bonita, sempre arrumada pela mãe, que eu chamava de tia. A mãe dela era professora e muito amiga da minha e da minha família de uma forma geral. Então eu nem lembro desde quando éramos amigos, a Fêr e eu, eu e a Fêr. Mas éramos inseparáveis.

Eu dormia, comia, levava muda de roupa pra tomar banho na casa dela e vice versa. Éramos um grude só. Brincávamos na lama no quintal dos meus avós e colocávamos barquinhos ou qualquer coisa nas enxurradas só pra ver correr rua abaixo. Pintávamos com guache os rolos de papel de padaria que o pai dela conseguia. Ilhas, famílias, casas, árvores, planetas... em uma lameca infinita de guache, água e papel encharcado de tinta. A Fêr tinha um pouco de ciúmes porque eu desenhava melhor do que ela, principalmente os personagens da turma da Mônica, que ela insistia em vestir com outras roupas e que se tornavam irreconhecíveis.

Dessa forma, mesma idade, proximidade familiar e um apego extremo um ao outro, ingressamos juntos na pré-escola, que chamamos carinhosamente de prezinho, o único na cidade naquela época. Então tínhamos a mesma professora, sentávamos juntos e ai de alguém que mexesse com um de nós dois.

Mas chegou o dia em que a professora nos separou, não sei por que, e fui brincar com outras crianças…. não sem, de vez em quando, procurar o olhar da Fêr, no meio de sua própria brincadeira, entretida. No final da aula minha prima veio nos buscar. Voltamos para a casa juntos e no caminho Fernanda contou pra minha prima sobre sua amiga Beatriz, que era bonita e pintava bem.

No dia seguinte, fomos novamente separados. Fiquei rabiscando carrinhos com os meninos e xinguei o Rodrigo porque ele dizia que meu desenho estava errado. Era alguma coisa sobre só aparecerem duas rodas no meu desenho. Disse um nome feio, e depois a professora veio me pedir pra não dizer de novo. No recreio fui sentar para comer com a Fêr mas ela não me deu muita bola.

Como sempre estava acostumado a fazer, pedi uma mordida do lanche dela. Era quase lei que tínhamos que experimentar o lanche um do outro. E ela disse não! Nesse momento, chocante e rápido como só um não! curto e seco pode ser, fingi que não ouvi e insisti. E ouvi outro não!

Eu não podia acreditar! Falei para ela parar com isso e ofereci o meu lanche, que ela recusou. Implorei dizendo que era só uma mordidinha, só pra saber o gosto que a mãe dela tinha colocado e ainda assim ela negou. Tentei pegar o lanche da mão dela, porque ela tinha que me deixar morder!

Ela gritou comigo “Pára!” e eu continuei segurando o braço dela com uma mão e com a outra tentando pegar o lanche. Lembro que eu dava risada pedindo ainda “Uma mordidinha!” e ela repetindo “Para!”, “Sai!”, “Não!”.

Então ela deu um tapa na minha cara. E eu parei. E ela parou.

E então eu dei um tapa na cara dela.

E ela parada, me olhando nos olhos levou a mão na bochecha vermelha. E sem dizer uma palavra seus olhos se encharcaram. Em seguida o lanche caiu no chão.

Ouvi uma menina correr gritando “Professora, o Hugo bateu na Fernanda!”

A Fêr baixou a cabeça para esconder as lágrimas que vertiam e eu paralisado não consegui dizer nada além de “Eu só queria uma mordidinha….”.

Naquela tarde voltamos separados. Tomei uma surra da minha mãe que gritava feito uma louca. Lembro de ter chorado convulsivamente na frente de toda a família dizendo “Desculpa, desculpa, desculpa!”, mas não era para eles que eu pedia desculpa. Depois minha mãe me levou na casa da tia. Fui colocado na frente da Fêr que não lembrava em nada a menina que chorava no prezinho. Estava linda como sempre foi. A minha amiga.

Pedi desculpa para ela e jurei que nunca mais aconteceria. Ela aceitou abaixando os olhos mas dizendo que sim ao mesmo tempo. Voltei para casa com minha mãe onde ouvi chorando de novo outro sermão e ameaças. Quando fui mandado para a cama, sentia um alívio de poder colocar a cabeça no travesseiro e não ter que encarar mais ninguém.

Nos dias que se seguiram, fui buscando me aproximar de Fernanda de novo e ela me recebeu quase como o normal. Agora ela passava uma parte do tempo com seus outros amigos e uma parte comigo. Fiquei muito feliz quando ela voltou a pedir para experimentar o meu lanche, oferecendo o seu.

Até hoje somos amigos e já repassamos esta história muitas vezes, inclusive rindo.

Porém, na doçura daqueles dias de infância feitos de sol e chuva restou amargo, um dia cinza, que nunca devia ter acontecido.

[Fábio Shakall, julho 2014, SP/BR]

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